Um poema é a projeção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base
da poesia: é tão-somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da
mente, que Campos estabelece.
Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao
mesmo tempo emotivo e intelectual.
A palavra contém uma ideia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente
científica, que não resume qualquer suco emotivo.
Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos,
o esboço de uma ideia.
Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura - "Ah ", digamos — não contém
elemento algum intelectual. Mas não existe um "ah ", assim escrito isoladamente, sem relação
com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o "ah " como falado e no tom da voz vai o
sentimento que o anima, e portanto a ideia ligada à definição desse sentimento; ou o "ah "
responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma ideia que essa frase
provocou.
Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas
em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras
através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só.
Porém meno que uma só não creio que possa ser.
A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção,
e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através
de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria
capacidade de expressão.
É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A
idéia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não poeta — em quem a emoção
domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as
faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um
produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de
si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações
mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.
A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por
contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção
naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.
Como o estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que
naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina
mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o
ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.
No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que
são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que
reduz os egoísmos à forma sociável.
Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica —, a que exprime
diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria
circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva,
como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à
disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o
fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam
com igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à disposição da
matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso,
porque a prosa não é verso.
O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é
escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e
esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande
prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o
ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares
sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores
e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha
disposta como o que se chama um verso.
Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal
novo de pontuação — digamos o traço vertical ( | ) — para determinar esta ordem de pausa,
ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no
fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica,
propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos
franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com
uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a
disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de
certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é
uma harmonia.
espontaneamente com a
largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo,
sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a
uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é
aprendida até fícar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já
subordinado a essa disciplina.
Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção
naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente
traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que
no ritmo há.
Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto,
isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico
pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio
de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do
pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou
Nenhum comentário:
Postar um comentário